quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O Prazer de Viajar - 44


Foto de M

Bagagens-invólucros-contentores ambulantes. Personagens, contentores de nós mesmos. A etiqueta com o nome, o modelo das malas, a cor, o tamanho, o modo mais ou menos sôfrego como são agarradas e levadas de um lugar de espera para outro lugar, a claustrofobia a que são votadas, entre tantas outras da sua espécie. Ou a simplicidade da mochila que pouco mais precisa do que o apoio das costas daquele jovem desprendido que guarda no corpo a aventura do pensamento. Depois, é imaginarmos o que viaja dentro de cada mala. As roupas dobradas no vinco certo, ou, pelo contrário, dobradas precisamente no vinco ao lado, ou do avesso, fora do canto a que pertencem, misturadas com o saco da espuma de barbear ou com o creme para as rugas e com o camisolão extra sugerido pelo boletim meteorológico antes da viagem. Naquela outra, o vestido chique para o jantar onde não convém perder o brilho, pousado mesmo no cimo para não se amarrotar, os sapatos de salto alto pensados para o tal vestido elegante (depende do conceito de elegância, claro) a juntar às sandálias de reserva, não vá romper-se a sola de tanto pisar terras desconhecidas. E haverá mais. Os extras da devoção e os da tentação. A obrigar o joelho do homenzarrão a poisar com força sobre o tampo da mala, um dos fechos a ceder de esforço, num gemido metálico: Já não posso mais, sufoco! E o outro, o do lado esquerdo, a boca escancarada, um grito rouco entre os dentes, a sua personalidade a recusar-se, a impor-se perante a prepotência: Rebento! Deixem-me!
E, presumindo eu que o dono do tal joelho, mais quadrado do que redondo, os poderia ter ouvido, imagino também que ele seria impelido a responder-lhes: Como corresponder aos vossos desejos se transportamos aqui lembranças para os nossos amigos?
É assim mesmo, levamo-nos connosco para todo o lado, conforme a maneira de ser de cada um. Se calhar temos medo de nos perdermos de nós mesmos.
M

Vila da Madalena, Ilha do Pico, Açores

3 comentários:

Licínia Quitério disse...

Também me interrogo sobre o que guardam as malas nesses aglomerados de viagem e imagino histórias e pertenças. Que bem discorres sobre o tema. Também as malas sabem muito de nós.

Anónimo disse...

Aqui te reconheço, tal qual antigamente, estas cogitações delirantes sobre um número, um peso, um pé... Onde o riso acontece na caricatura que às vezes somos.
Sempre ando a lutar com malas, tu sabes, que fará falta, que será perdido, que será frio, que será calor. Que me apetece, que não.
Mas particularmente me fizeste lembrar, com essa dos presentes, uma vez que vim com uma mochila às costas que devia pesar mais que a mala... Era Londres e havia o bacon, as compotas, as latas, os Cadbury, "babies watercress" que nunca vi cá...montes de mil artefactos. Ah... por onde andava a minha alma, sempre inquieta, em fuga e de volta;
tal qual uma mala perdida,
remetida
ao vôo inicial
algures num ponto com símbolos
código de barras que contém algo de nós
e não sabemos...
Bj
da bettips

Benó disse...

É um prazer viajar mas é uma canseira fazer as malas. É uma alegria desfazê-las, entregar as lembranças e ver o sorriso no rosto dos que recebem. Nem calculam o que vimos e regateámos para comprar uma originalidade que, muitas vezes sem qualquer utilização, é arrumada numa gaveta. Malas que nos transportam e que guardam dentro de si a amostragem do que somos.